29 de abril de 2025
Nova Imagem no Header

Emilio Lussu: um olhar italiano da Primeira Guerra Mundial

"Um ano sobre o Altiplano" é obra magistral do escritor e ex-combatente Emilio Lussu, que depois da guerra se tornou referência para movimentos antifascistas e pacifistas.
26 de abril de 2025
Ilustração de Emilio Issu feita com auxílio de IA de foto da Lapresse.
Ilustração de Emilio Issu feita com auxílio de IA de foto da Lapresse.

“Nada de novo no Front”, do alemão Erich Maria Remarque (1898-1970), é o mais conhecido livro de um ex-combatente da Primeira Guerra Mundial, ainda mais depois do sucesso do filme homônimo da Netflix, vencedor de quatro estatuetas do Oscar, em 2023. “Memórias de um oficial de infantaria”, do ex-combatente britânico Siegrified Sasson (1886-1967), também é muito popular. E “Adeus às armas”, de Ernest Hemingway, é considerado o melhor romance americano do século XX. Mas, em se tratando da literatura da Primeira Guerra Mundial, seria uma pena ficar apenas com britânicos, americanos e alemães. Há muito mais a se explorar.

Para sair um pouco do óbvio, recomendo conhecer o escritor italiano Emilio Lussu (1890-1975) e o seu livro “Um ano sobre o altiplano”, lançado no Brasil em 2014, pela Mundaréu, na ocasião do primeiro centenário da Grande Guerra. De leitura rápida e bem escrito, o livro fala sobre a Frente Italiana, uma frente corriqueiramente esquecida pelos historiadores e pelos cineastas, mas extremamente importante na guerra e com paisagens totalmente diferentes da Frente Ocidental. Na Frente Italiana, austríacos e italianos combatiam palmo a palmo montanhas geladas e cheias de neve, particularmente da região do Isonzo e do Planalto de Carso.

Emilio Lussu

Emilio Lussu foi uma figura proeminente da história política e cultural italiana do século XX, conhecido por sua trajetória multifacetada como militar, político e escritor. Durante a Primeira Guerra Mundial, recém-egresso da faculdade de Direito, Lussu alistou-se 1m 1914, antes mesmo da entrada da Itália na guerra. Foi oficial do exército italiano, lutando das batalhas na região de Asiago, contra o exército multiétnico do Império Austro-Húngaro. Lussu lutou até 1918, condecorado várias vezes. Viu companheiros morrerem de forma absurda e foi forçado a questionar suas ideias sobre a Europa, a paz e a política em meio à crise europeia.

Essas experiências marcaram profundamente sua visão crítica da guerra, tornando-o posteriormente um importante defensor da paz e um forte crítico da militarização exacerbada que predominava na Itália fascista. E isso lhe custou caro. Lussu foi eleito para o parlamento italiano em 1921 e em 1926 foi preso, após, em legítima defesa, atirar contra um partidário fascista. Passou 5 anos preso. Em 1929, fugiu e exilou-se em Paris. Engajado politicamente, ele participaria da Guerra Civil Espanhola e da resistência italiana durante a Segunda Guerra Mundial. Depois da guerra, foi deputado constituinte em 1946 e ministro de vários governos italianos.

Livro "Um ano sobre o altiplano", do escritor Emilio Lussu.
Livro foi lançado no Brasil em 2014 – confira aqui.

“Un anno sull’Altipiano” (“Um ano no Planalto”) foi publicado pela primeira vez em 1938. O livro é um relato ficcional, mas totalmente baseado nas experiências de combatente de Lussu. Os episódios cobrem o período da primavera europeia, entre 1916 e 1917, em Asiago. A linguagem é simples, crua e repleta de detalhes sobre as trincheiras, as tempestades de neve, o efeito do gelo no moral dos soldados e em sua saúde.

Duas coisas me chamaram a atenção em “Um ano sobre o altiplano”, quando comparado a outros livros de ex-combatentes da Primeira Guerra Mundial: 1. Os eventos se concentram em apenas um ano e praticamente tudo ocorre dentro da frente de combate. No máximo, os personagens se afastam por alguns dias para posições na retaguarda, em algum pequeno vilarejo italiano. Isso dá ao leitor uma imersão imensa no conflito.

2. Lusso é engraçado. Há muitas passagens em que o leitor vai rir. Isso acontece porque Lussu mostra como muitos generais e comandantes italianos eram desastrados, pessimistas, beberrões, falantes, desafiadores. Mas há também cenas dramáticas e difíceis, como fuzilamento de amotinados e mortes banais – j porque os generais e comandantes italianos eram, também, em sua maioria, irresponsáveis e elitistas.

Há muitos trechos muito substantivos do livro. Um deles, um dos que mais me agradou, faz referência ao momento em que o protagonista finalmente encontra um austríaco. Ele estava já na guerra há meses, matando, mas sem ver o soldado inimigo. E quando o viu, tomou um susto. Era um soldado muito parecido com ele. Veja esse curto trecho:

“Agora se mostravam diante de nós na sua verdadeira vida. O inimigo, o inimigo, os austríacos, os austríacos!… Eis aí os inimigos, e eis aí os austríacos. Homens e soldados como nós, feitos como nós, em uniforme como nós, que nesse momento se moviam, falavam e tomavam café, exatamente como estavam fazendo atrás de nós, nessa mesma hora, nossos próprios companheiros. Coisa estranha. Uma ideia dessas nunca tinha me ocorrido. Agora estavam tomando café. Curioso! E por que não deveriam tomar café? Por que, então, me parecia extraordinário que tomassem café? E, lá pelas dez ou onze, consumiriam também o rancho, exatamente como nós. Por acaso, o inimigo pode viver sem beber e sem comer? Certamente não. E então, qual a razão do meu estupor?”

Escreveu a pedido de amigo

“Um ano sobre o altiplano” foi escrito entre 1936 e 1937, em um sanatório de Clavadel, perto de Davos, na Suíça. “Retirei-me para lá após uma doença pulmonar que, contraída no cárcere, se agravou, não pôde ser tratada nos limites de Liparu e, depois da evasão, foi negligenciada na França”, explica o próprio Lassu no prefácio da edição brasileira. Lussu conta ainda que não teria escrito a obra sem a persistência de seu amigo Gaetano Salvemini, que pedia constantemente a Lassu para escrever “o livro”.

“Um ano sobre o altiplano” é uma narrativa marcante que denuncia o absurdo da guerra e as decisões arbitrárias das lideranças militares, baseadas em sua vivência direta nos combates. Se você gosta de literatura de guerra e Primeira Guerra Mundial, o livro certamente será uma leitura agradável, assim como conhecer um pouco mais sobre a vida de Emilio Lassu, esse antifascista e ex-combatente das montanhas geladas.

Se você gostou desta matéria, considere ler também:

Segunda Guerra Mundial ganha livro em coleção da Editora Globo

Bruno Leal

Doutor em História Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e professor do Departamento de História da Universidade de Brasília. É editor do portal Café História e colabora esporadicamente para o Bonecas Russas.

Don't Miss