“Eu não me interesso em filmar os objetos, a casa da pessoa, em detalhar a condição social. O que me interessa é um rosto que fala. Existem filmes em que, para cortar, mostram um cachorro no chão, um quadro na parede. Nos meus filmes, não. As pessoas falam com o verbal e com o gestual. Quando as conversas rendem, têm uma qualidade poética tão grande que qualquer tipo de ilustração é empobrecimento”, disse Eduardo Coutinho ao periódico Piscologia USP, em entrevista de 2009.
Se tem uma coisa que Eduardo Coutinho fez na sua vida, foi, de fato, filmar rostos que falam. Em dezenas de documentários produzidos em mais de 50 anos de carreira, o documentarista paulista botou muita gente na tela para falar sobre suas ideias e visões de mundo. Mas antes de falar sobre as obras do cineasta que colocou o nome do Brasil no palco global do cinema-documentário, vamos começar pelo começo.
Quem foi Eduardo Coutinho
Eduardo Coutinho foi um cineasta, especializado em documentários. Se Coutinho não é o maior documentarista que o Brasil já teve, está, ao menos, em um TOP-3. Nascido em São Paulo, em 11 de maio de 1933, Eduardo Coutinho começou sua jornada longe das câmeras. Filho de uma família de classe média, ingressou no curso de Direito da USP, mas abandonou a faculdade para se dedicar ao cinema após vencer um concurso televisivo sobre Charles Chaplin, que lhe garantiu uma bolsa no Institut des Hautes Études Cinématográficas (IDHEC), em Paris 18, na França.
De volta ao Brasil nos anos 1960, integrou o movimento Cinema Novo e iniciou o ambicioso projeto Cabra Marcado para Morrer (1984), interrompido pelo golpe militar de 1964. Após anos trabalhando como jornalista no Globo Repórter, retomou o filme em 1981, transformando-o em um marco do documentário brasileiro e internacional.

Na biografia “Sete faces de Eduardo Coutinho”, o jornalista Carlos Alberto Mattos nos oferece uma análise crítica que entrelaça vida e obra do cineasta. Observando as transversalidades e as conexões no tempo da obra completa – empreitada inédita -, Mattos revela as diferentes faces do realizador. Confira aqui.
O filme é uma narrativa semidocumental da vida de João Pedro Teixeira, um líder camponês da Paraíba, assassinado em 1962. Coutinho conversa com vários camponeses e familiares de João Pedro, especialmente sua viúva, Elizabeth Teixeira. O resultado é um retrato profundo da luta pela reforma agrária e das marcas da repressão, misturando passado e presente por meio de entrevistas, imagens de arquivo e cenas inacabadas do filme original. Cabra Marcado para Morrer transcende a história de um indivíduo e se torna um testemunho poderoso sobre resistência, memória e as cicatrizes deixadas pela ditadura militar no Brasil.
A carreira de Coutinho foi marcada por uma busca incessante por narrativas autênticas. Ele não apenas registrava a realidade, mas a construía com ética e sensibilidade, ouvindo pessoas à margem da sociedade — de camponeses a moradores de prédios populares. Sua morte trágica, em 2 de fevereiro de 2014, assassinada pelo próprio filho durante uma crise psicótica, interrompeu seu último projeto, Últimas Conversas (2015), finalizado postumamente por João Moreira Salles.
O cineasta da escuta
Eduardo Coutinho revolucionou o documentário ao priorizar a escuta. Seu método dispensava roteiros prévios ou entrevistas estruturadas. Em vez disso, ele criava espaços de confiança onde os personagens se revelavam naturalmente. “Aquilo que existe, pelo simples fato de existir, já me interessa”, costumava dizer. Seus filmes eram construídos a partir de diálogos horizontais, nos quais a câmera não escondia seu papel: o diretor aparecia em cena, questionando e expondo o próprio processo de filmagem, como em Jogo de Cena (2007), onde atrizes reinterpretavam depoimentos reais, borrando as fronteiras entre realidade e ficção.
Essa abordagem rendeu documentários que funcionam como retratos íntimos do Brasil. Em Edifício Master (2002), por exemplo, ele alugou um apartamento em Copacabana para capturar a vida de 276 moradores, revelando dramas como a solidão urbana e a prostituição. Já em Santo Forte (1999), explorou a fé em uma favela carioca, mesclando católicos, evangélicos e umbandistas.
Entre outros filmes notáveis estão Babilônia 2000 (2001), Peões (2004) e As Canções (2011), todos explorando a riqueza das experiências humanas através da conversa e da escuta atenta.
“Perguntam muito por que eu só filmo os excluídos. Mas eu achei ótimo fazer um filme como o Master, sobre a classe média baixa. Eu tento desconsiderar o problema da classe ou da categoria à qual a pessoa pertence e fazer filmes que não sejam estereótipos. Então, se eu filmo em uma favela ou gente pobre no Nordeste, que são universos afastados do meu, não há o menor problema.”
Seu trabalho acumulou prêmios como o Kikito de Cristal (Gramado), o Golfinho de Ouro (Festrória) e homenagens em festivais de Brasília e Havana. Em 1999, Santo Forte conquistou o Prêmio Especial do Júri em Gramado, consolidando-o como referência global.
Em seu velório, o cineasta Walter Moreira Salles resumiu:
“Coutinho era único e insubstituível. Ele era daquelas pessoas que nos faz lembrar que é um privilégio viver no mesmo tempo que ele. Que privilégio é poder assistir àqueles filmes e entender um pouco melhor o país tão complexo em que a gente vive. Era um cinema feito de generosidade, de escutar o outro, de revelar e de desvendar – disse o cineasta – Nunca fui a um velório no qual os personagens tomaram a mão e conduziram enterro”.
Durante a cerimônia, pessoas cantaram My Way, que fez parte de uma das cenas mais inesquecíveis do Edifício Master.
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