14 de março de 2025
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Fahrenheit 451: o universo distópico onde os bombeiros queimam livros

Publicado em 1953, "Fahrenheit 451" — título que remete à temperatura em que o papel entra em combustão — é um marco da ficção científica distópica.
11 de fevereiro de 2025
Livros ardem em cena que poderia ocorrer dentro do universo distópico de Fahrenheit 451
Livros ardem em cena que poderia ocorrer dentro do universo distópico de Fahrenheit 451. Foto: Canva.

Imagine um mundo onde os bombeiros não apagam incêndios, mas os iniciam para destruir livros. Pois saiba que esse mundo existe: ele é fruto da imaginação incrível e crítica do escritor Ray Bradbury, que em seu livro mais famoso, Fahrenheit 451, faz uma das críticas mais contundentes à alienação cultural e à censura.

Publicado em 1953, Fahrenheit 451 — título que remete à temperatura em que o papel entra em combustão — é um marco da ficção científica distópica. A obra não só antecipou dilemas do século XXI, como a dependência tecnológica e a desvalorização do pensamento crítico, mas também questionou: o que acontece quando uma sociedade escolhe queimar suas ideias em vez de debatê-las?

Fogo como arma de controle

A história de Fahrenheit 451 acompanha Guy Montag, um bombeiro cuja função é queimar livros em um futuro onde a literatura é proibida. A sociedade retratada por Bradbury vive sob o lema felicidade instantânea: as pessoas se entorpecem com programas de TV interativos (as “paredes de entretenimento”), escutam rádios minúsculos em seus ouvidos (“conchas marinhas”) e veem o conhecimento escrito como uma ameaça.

A vida de Montag muda ao conhecer Clarisse McClellan, uma jovem que questiona o mundo ao seu redor com perguntas simples: “Você é feliz?”. Sua curiosidade desperta nele uma inquietação que o leva a roubar e ler livros, desafiando um sistema que criminaliza o pensamento.

Você pode achar que isso tudo é uma tremenda “viagem”. Mas saiba que não é. A destruição de livros é uma realidade em muitos países de regimes autoritários e totalitários. Na ditadura militar brasileira (1964-1985), por exemplo, vários livros foram censurados – não podiam ser comercializados. E eu não estou falando apenas de livros de Marx, não. “Laranja mecânica”, de Anthony Burgess, esteve entre os banidos.

Na Alemanha Nazista, grupos estudantis dominados pelos nazistas realizaram queimadas públicas de livros que eles alegaram serem “não alemães”. Marx, Freud, Einstein, Remarque…a lista é longa dos livros proibidos pelo regime.

Ah, mas Ana Paula, tudo bem. Estamos falando do passado e de regimes de exceção. Nossa democracia está bem protegida. Que nada. Em 2022, o conselho escolar de um condado do estado do Tennessee, nos EUA, decidiu proibir o uso da história em quadrinhos “Maus”, do quadrinista Art Spiegelman, em sala de aula. O livro é uma referência internacional no debate sobre o Holocausto. Segundo a ata da reunião, o diretor Lee Parkinson disse que no livro “há uma linguagem crua e questionável”.

Censura, conformismo e tecnologia

Bradbury não se limitou a criticar a censura estatal. Ele explorou como a apatia coletiva e a busca por prazer imediato podem corroer a liberdade. Na distopia de Fahrenheit 451, os livros são queimados não apenas por ordem do governo, mas porque a própria população rejeitou a complexidade das ideias. “Não precisamos de livros que nos façam pensar”, afirma o capitão Beatty, chefe de Montag. “Precisamos de diversão sem esforço.”

Por isso, nem toda leitura era proibida. E as pessoas sabem ler. No universo distópico de Fahrenheit 451, todos estão previamente autorizados a ler apenas brochuras técnicas, que lhe permitam montar máquinas ou acessar dispositivos que lhe proporcionem entretenimento. É o caso, por exemplo, do manual da TV, que está super liberado. A personagem Beatty diz:

“Todo homem capaz de desmontar um telão de tevê e montá-lo novamente, e a maioria consegue, hoje em dia está mais feliz do que qualquer homem que tenta usar a régua de cálculo, medir e comparar o universo, que simplesmente não será medido ou comparado sem que o homem se sinta bestial e solitário. Eu sei porque já tentei. Para o inferno com isso!

E ela dá a solução:

“Portanto, que venham seus clubes e festas, seus acrobatas e mágicos, seus heróis, carros a jato, motogiroplanos, seu sexo e heroína, tudo o que tenha a ver com reflexo condicionado. Se a peça for ruim, se o filme não disser nada, estimulem-me como o teremim, com muito barulho. Pensarei que estou reagindo à peça, quando se trata apenas de uma reação tátil à vibração. Mas não me importo. Tudo o que peço é um passatempo sólido”.

Desse modo, a tecnologia, em vez de ser uma ferramenta de emancipação, serve como instrumento de alienação. As “famílias” das paredes de TV substituem laços reais, e a velocidade das informações superficiais anula a reflexão. Bradbury previu, décadas antes das redes sociais, um mundo onde a superfície substitui a profundidade. No mundo de Fahrenheit 451, as pessoas não querem dilemas, diálogos profundos, crises existenciais e nem reflexões – elas querem estímulos duradouros e escapistas.

Fahrenheit 451 antecipa, desta forma, em muitos anos, um tipo mordaz à tecnologia capitalista que vemos em séries como Balckmirror.

Choque e esperança

Se na década de 1950 a preocupação era com a TV, hoje o romance ecoa em debates sobre cancelamento cultural, desinformação e vício em algoritmos de redes sociais que nos oferecem apenas aquilo que queremos encontrar, o mais do mesmo dos amigos com os quais mais concordamos. Vivemos em uma era onde, paradoxalmente, temos acesso a mais informação do que nunca, mas muitas vezes preferimos o conforto dos echochambers (bolhas ideológicas ou “câmeras de eco”) à complexidade dos livros (complexs).

Em 2015, segundo a revista Forbes, os livros de colorir para adultos eram 8 dos 10 de não ficção mais vendidos no Brasil. Apenas o Grupo Editorial Record vendeu, naquele ano, 260 mil exemplares de livros de colorir. Hoje, eles continuam em alta, mas perderam o pódio para os livros religiosos e de autoajuda, especialmente os de natureza financeira.

Embora soubesse estar testemunhando uma transformação social única, Bradbury afirmava não acreditar que o cenário que imaginou se tornaria realidade tão rápido. Lançado em 1953, Fahrenheit 451 é hoje uma obra de leitura indispensável com 1984, de George Orwell, e Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley. Clique aqui e confira a ótima edição brasileira.

Bradbury também anteviu a banalização da violência: em uma cena de Fahrenheit 451, Mildred assiste impassível a notícias de guerra como se fosse entretenimento. Hoje, cenas de conflitos são transmitidas ao vivo para celulares, enquanto scrollamos sem reagir. Isso tudo começou com a guerra do Vietnã, a primeira guerra televisonada da história. E não parou mais – confira aqui um artigo bem interessante sobre o tema.

Mas nem tudo é desespero no livro. O fogo em Fahrenheit 451 tem duplo significado: é destruição, mas também renascimento. Enquanto os bombeiros usam as chamas para apagar o passado, um grupo de resistentes — os “homens-livro” — memoriza obras literárias para preservá-las oralmente. A metáfora da fênix (ave mitológica que renasce das cinzas) aparece no final, sugerindo que, mesmo na destruição, há esperança de reconstrução.

Adaptações e atualidade

A obra inspirou adaptações para o cinema. A mais famosa delas, em 1966, o filme de mesmo nome do livro dirigido por François Truffaut. Foi o primeiro e único filme do cineasta em língua inglesa, filmado na Inglaterra. Eu adoro o livro, mas confesso que acho o filme ainda melhor. Raro caso. Em 2018, Ramin Bahrani trouxe o livro novamente para os cinemas, desta vez com Michael B. Jordan, Aaron Davis e Cindy Katz no elenco, mas não fez tanto sucesso quando o original de 1966.

Mais de 70 anos desde a publicação, a distopia de Bradbury nos convida a refletir: do que temos medo quando olhamos para um livro? Por que o conhecimento pode ser tão perigoso para algumas classes sociais? Queimar livros é apagar diálogos, dissidentes e a possibilidade de mudança. Mas, como mostra Montag, basta uma faísca para reacender a chama do questionamento — mesmo que ela nasça das cinzas.

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Ana Paula Tavares

Jornalista formada pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Mestre em História Política e Bens Culturais pela Fundação Getúlio Vargas (FGV). Trabalhou na Globosat e na Fundação Roberto Marinho. Atualmente, é redatora-chefe do Bonecas Russas e subeditora do Portal Café História. Adora Jane Austen, The Office e mora em Brasília.

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