O livro O Crematório Frio: Um relato de Auschwitz, de József Debreczeni, acaba de chegar ao Brasil, 75 anos após a sua publicação original, em húngaro, em 1950. O relato permaneceu inédito fora do húngaro durante esse tempo todo devido às tensões políticas da Guerra Fria e pelo persistente antissemitismo. Era considerado por muitos no Ocidente como “muito soviétivo”. No Brasil, o livro, que foi considerado um dos 10 melhores do ano pelo jornal americano The New York Times, ganha tradução (de Zsuzsanna Spiry) pela Companhia Das Letras em edição com posfácio do premiado escritor Michel Laub, de “Diário da queda” (2011).
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József Debreczeni foi o pseudônimo de József Bruner, nascido em Budapeste em 1905. Após a Segunda Guerra Mundial, mudou-se para Belgrado. Durante o conflito, ele trabalhava como jornalista e editor de jornal, mas foi demitido devido à sua origem judaica. Em 1944, foi deportado para Auschwitz e forçado a trabalhar em três campos de concentração: AL Falkenberg (conhecido como Eule, em Sowina), AL Fürstenstein (Castelo Książ, em Wałbrzych) e AL Dörnhau (em Kolce). Esses locais faziam parte dos subcampos do Projeto Riese, ligados ao campo de concentração de Gross-Rosen.
Estabelecido em Belgrado em 1945, Debreczeni contribuiu para jornais e revistas, além de traduzir literatura de várias nacionalidades. Ele também teve peças teatrais encenadas, escreveu poesias e publicou livros. Foi extremamente reconhecido e premiado por seu trabalho em seu país natal. József Debreczeni faleceu em Belgrado em 1978.
Segundo Laub, ele não é apenas uma memória do Holocausto, mas um manifesto contra a indiferença e a intolerância. Essa perspectiva faz com que o relato de Debreczeni ecoe atualmente, quando discursos de ódio e revisionismo histórico ameaçam apagar as lições do passado.
“Acredito que em algum lugar na Europa Oriental, junto a uma floresta verdejante, ao longo de um talude ferroviário, ocorreu uma extraordinária metamorfose. Foi aí que as pessoas deste trem infernal fortemente trancado foram transformadas em animais. Do mesmo modo que todas as outras – as centenas de milhares de pessoas que a loucura arrancara de quinze países e levara para fábricas de morte e câmaras de gás.”
József Debreczeni
Karl Ove Knausgård, renomado autor norueguês, descreveu o livro como “Um testemunho poderoso e profundamente humano sobre o horror dos campos de concentração.” Essa humanidade é visível na forma como Debreczeni retrata não apenas o sofrimento, mas também os pequenos atos de solidariedade que persistiram, mesmo em meio ao horror.
Por que ler József Debreczeni hoje?
O relançamento de O Crematório Frio ocorre em um momento crucial, em que vozes de sobreviventes do Holocausto se tornam cada vez mais raras e que outros genocídios continuam acontecendo. Desta forma, a obra de Debreczeni não é apenas uma janela para o passado, mas um alerta para o presente. Em tempos de ascensão do extremismo, sua narrativa é uma súplica para que os erros da humanidade não sejam repetidos.
Além disso, a escrita de Debreczeni se destaca pela sua capacidade de equilibrar precisão histórica e lirismo. Ele transporta o leitor para dentro das experiências mais brutais, mas também o desafia a refletir sobre as questões éticas e políticas que permeiam a memória coletiva.
A leitura de O Crematório Frio é indispensável para quem busca compreender o impacto do Holocausto não apenas sobre as vítimas diretas, mas também sobre as gerações futuras. O livro se junta ao cânone de grandes obras da literatura do Holocausto, como Se Isto é um Homem, de Primo Levi, e O Diário de Anne Frank, como um lembrete poderoso de que a memória é uma arma contra a repetição do horror.
Testemunha do Holocausto e literatura
Segundo o pesquisador brasileiro, Márcio Seligmann-Silva, da Unicamp, “o testemunho tem sido pensado na Europa e Estados Unidos tanto a partir de leituras que cruzam os discursos da teoria da literatura, da disciplina histórica e da teoria psicanalítica, como também dentro da onda de pesquisas dentro dos estudos sobre a “memória” que têm se intensificado muito nas últimas duas décadas, sob a influência das abordagens culturalistas”. Ainda segundo Seligmann-Silva, “discurso testemunhal é analisado neste contexto como tendo a literalização e a fragmentação como as suas características centrais (e apenas à primeira vista incompatíveis). A obra de József Debreczeni talvez seja uma oportunidade de ver isso tudo.