Em 1972, era difícil encontrar uma boate italiana que não executasse pelo menos uma vez na noite a canção mais executada do país naquele ano: rock meio Elvis Prisencolinensinainciuso. Era a primeira música do cantor italiano Adriano Celentano sem ser em italiano. Cantada com sotaque americano, ela embalou os jovens italianos de ponta a ponta do país.
Nada disso seria digno de nota, não fosse um “detalhe”: a música não tinha uma palavra sequer de inglês. Celentano nem mesmo sabia falar aquela língua. Ele simplesmente reuniu palavras que soavam inglês, sem qualquer sentido, simulou um sotaque bem americano e gravou. Em algumas semanas, a música subia que nem foguete nas paradas de sucesso da Itália, Bélgica, Alemanha e fez sucesso até nos Estados Unidos. Todo mundo caiu. Essa talvez tenha sido a maior trolagem da história da música!
Por que Adriano Celentano fez isso?
Mais do que um sucesso musical, a música foi um experimento social minuciosamente preparado por Celentano. Cansado de ver a música local desvalorizada frente aos hists que vinham dos Estados Unidos, só porque eram americanos, ele decidiu fazer uma crítica à obsessão cultural italiana pelo anglofonismo, mostrando que as pessoas não estavam se interessando pelo que era dito, desde que a melodia parecesse inglês. E foi assim que nasceu a crítica, enganadora e divertida Prisencolinensinainciuso.
A ideia surgiu quase por acaso. Enquanto gravava o álbum Disc Jockey (o lado B do single), Celentano improvisou uma batida repetitiva e começou a vocalizar sons que imitavam o ritmo e a entonação do inglês americano. O resultado foi uma letra completamente inventada, uma “algaravia” que soava familiar, mas indecifrável. A única frase reconhecível era “ol rait” (similar a “all right”), um aceno irônico à cultura pop.
Em entrevista recente à NPR, Celentano, que tem hoje 87 anos, explicou: “Eu pensei que escreveria uma música que teria apenas como tema a incapacidade de se comunicar. E para fazer isso, eu tive que escrever uma música onde a letra não significasse nada”. Para ele, era uma forma de criticar a superficialidade com que o público consumia música estrangeira — os italianos amavam canções em inglês, mesmo sem entender as letras. As pessoas gostavam do ritmo, não das palavras, ele confirmou.
Sucesso internacional
Lançada em novembro de 1972, a canção passou inicialmente despercebida na Itália. Tudo mudou quando Celentano a cantou na televisão nacional. Vestindo trajes glamourosos e dançando com energia frenética, ele transformou o nonsense em espetáculo. O público se rendeu: a canção chegou ao topo das paradas na Itália, França, Alemanha e Bélgica, e até nos EUA.
Nas décadas seguintes, a canção ganhou status de cult. Em 2009, o blog Boing Boing a descobriu, chamando-a de “rock galimatías” e destacando seu caráter visionário. No TikTok e no Twitter, vídeos da performance televisiva de Celentano acumulam milhões de visualizações, com jovens descobrindo (e celebrando) a audácia do experimento.
A obra também inspirou outros músicos a explorar idiomas inventados. Do “vonlenska” da banda islandesa Sigur Rós ao “Aserejé” das espanholas Las Ketchup (que parodiavam “Rapper’s Delight”), a ideia de usar sons sem significado para transcender barreiras linguísticas ganhou novos capítulos.
Para o crítico Sasha Frere-Jones, do New Yorker, a canção é “um monumento à universalidade da música, onde a emoção substitui a linguagem”. Já Celentano, hoje com 87 anos, mantém o humor: “Fiz algo que não significava nada… e todo mundo adorou”.
Adriano Celentano
Adriano Celentano (nascido em 6 de janeiro de 1938) é um cantor, compositor, ator e cineasta italiano, considerado um dos artistas mais influentes da música pop italiana. Apelidado de “Molleggiato” por seu estilo de dança único, Celentano começou sua carreira musical nos anos 1950, inspirando-se no rock and roll americano de Elvis Presley. Com uma trajetória que abrange mais de seis décadas, ele lançou sucessos como Azzurro, Prisencolinensinainciusol e Il Ragazzo della Via Gluck, além de atuar e dirigir filmes populares na Itália. Seu estilo irreverente e carismático o tornou um ícone da cultura italiana.
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