14 de março de 2025
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Tsundoku: a palavra japonesa para o hábito de acumular livros

Tsundoku é um termo japonês que descreve o hábito de acumular livros (ou outros materiais de leitura) sem os ler, deixando-os empilhados em casa. Mas isso não deve ser visto como um problema.
15 de fevereiro de 2025
Ilustração de uma sala japonesa, com muitos livros empilhados e um gato dormindo. Tsundoku puro.
Tsundoku é mesmo um problema? Parece que não. Foto: Dall-E.

Sabe quando você vai a uma livraria, vê um livro que gostou muito e compra ele, mesmo tendo uma pilha de livros em cada que ainda não conseguiu ler? Pois bem, os japoneses criaram uma palavra para definir isso: tsundoku.

Tsundoku é um termo japonês que descreve o hábito de acumular livros (ou outros materiais de leitura) sem os ler, deixando-os empilhados em casa. Originado na era Meiji (1868–1912), a palavra combina os caracteres tsunde (積, “empilhar”) e doku (読, “ler”), derivando de um trocadilho entre tsunde oku (“empilhar e deixar de lado”) e dokusho (“leitura”).

O termo japonês se diferencia da bibliomania, muito comum no Ocidente, que se refere ao colecionismo obsessivo, um tanto consumista. O tsundoku está ligado à intenção otimista de ler no futuro, mesmo que isso não ocorra.

Comum entre entusiastas da leitura, o fenômeno se expandiu e tem sido utilizado hoje para se referir ao acúmulo de e-books, jogos e outros itens digitais, refletindo tanto o amor pelo conhecimento quanto a frustração pela falta de tempo ou prioridade. A prática é vista como um misto de conforto (pela presença dos livros) e culpa (pelo acúmulo não resolvido).

Andrew Gerstle, que ensina textos japoneses pré-modernos na Universidade de Londres, conversou com a reportagem da rede BBC sobre o tema. Ele revelou que o termo pode ser mais antigo do que imaginamos: até onde se sabe, Tsundoku foi usado pela primeira vez (em livro) em 1879.

Gerstle também explicou que a palavra “doku” pode ser usada como um verbo – “ler”. O “tsun” em “tsundoku” é originário de “tsumu” – uma palavra que significa “empilhar”. “Então, quando colocados juntos, “tsundoku” tem o significado de comprar material de leitura e empilhá-lo.”

Antibiblioteca

Em 2015, a revista Hau Journal of Ethnographic Theory, uma publicação de acesso aberto com edições que ultrapassam, em média, 500 páginas, publicou um editorial assinado por Giovanni da Col, da Universidade de Cambridge. No texto, o autor faz uso do termo japonês tsundoku para se referir ao acúmulo de livros e periódicos não lidos, mas disponíveis.

Para Col, uma coleção de livros não deve ser vista como uma posse, mas como uma ferramenta de pesquisa. Essa reflexão, diz Col, se conecta à ideia de Nassim Nicholas Taleb, para quem, quanto mais alguém sabe e envelhece, maior tende a ser seu acervo de livros não lidos. Taleb denomina essa coleção de antibiblioteca e sugere que um verdadeiro acadêmico deveria se preocupar menos com o conhecimento acumulado e mais com o desconhecido.

A antibiblioteca, segundo Taleb, representa um estado de permanente aprendizado, onde o valor do conhecimento está não apenas no que já foi lido, mas no que ainda pode ser descoberto. Esse conceito, diz Col, desafia a visão tradicional da erudição como um estoque fixo de informações e propõe que o acadêmico consciente do poder da antibiblioteca não trata o conhecimento como uma propriedade a ser consumida, mas como um campo de possibilidades. Assim, o chamado antiacadêmico não se define pela quantidade de livros que leu, mas pela capacidade de reconhecer e acessar informações quando necessário, sem a pretensão de dominar tudo.

Essa perspectiva ressignifica a relação entre leitura e conhecimento, deslocando o foco da posse para a disponibilidade. Livros não lidos não são um sinal de negligência, mas um testemunho da curiosidade intelectual e da consciência da vastidão do desconhecido. Em vez de enxergar uma biblioteca pessoal como uma coleção de obras dominadas, o acadêmico informado por essa lógica a percebe como um repositório vivo, sempre à disposição para ser explorado no momento oportuno.

Tsundoku como “a própria cultura”

O termo Tsundoku costuma ser atribuído a Tajiri Inejiro (1850–1923), mas sua popularização se deve a um escritor, crítico e tradutor japonês do período Meiji chamado Uchida Roan (1868-1929).

Roan nasceu em uma família de ex-samurais e fez sua formação em Tóquio. Sempre foi grande leitor. Recitava poesia da dinastia Tang, lia textos de Fukuzawa Yukichi e de autores ingleses. Era admirador de Dickens, Tolstói e Wilde. Durante a juventude e a vida adulta, colaborou com várias revistas japonesas importantes da vida cultural japonesa. Foi tradutor para o japonês (a partir do inglês) de clássicos como Crime e Castigo, de Dostoiévski, e Anna Kariênina, de Tolstói.

Entre as décadas de 1910 e 1920, Roan escreveu uma série de ensaios que colocavam em dúvida se a leitura era mesmo um meio para o cultivo pessoal e realização social. Ele chamou isso de “teoria do esclarecimento da leitura” (keimoteki dokushosetsu). Como explica o pesquisador Nathan Shockey, em seu incrível livro The Typographic Imagination – reading and Writing in Japan’s Age of Modern Print Media, “Roan argumentou por uma visão das relações entre livros e seus donos que resistisse à instrumentalização do meio [o livro] como ferramenta para acumular conhecimento ou alcançar sucesso profissional”.

Roan escreveu um ensaio intitulado “Tsundoku Sensei Raisan” (Em Louvor ao Sr. Tsundoku). Nesse texto, ele descreve um “Tsundoku sensei” como alguém que deixa os livros se acumularem sem os ler. Roan não acha que uma pilha de livros não lidos seja uma coisa ruim. Não acha que os livros são feitos apenas para serem lidos. Os livros, ele advoga, são feitos também para serem empilhados, mesmo porque, por mais que um leitor seja rápido e disponha de toda a vida apenas para ler, ele não vai ler praticamente nada do que já foi publicado. Além disso, diz Roan, sempre houve mais pessoas que os usaram como decoração do que fonte de conhecimento.

“Roan defende o tsundoku no contexto do problema de lidar com uma quantidade esmagadora de material em uma economia moderna de consumo de mercadorias”, diz Shockey.

A parte mais incrível (pelo menos para mim) do pensamento de Roan é quando ele argumenta que o tsundoku é uma figura crucial na sociedade para a preservação e transmissão da cultura:

“Se todos acreditassem que você não deveria possuir livros que não lê ou que deve ler todos os livros que possui, então a maioria dos livros não seria publicada em primeiro lugar. Mesmo que fossem, a maioria nunca veria a luz do dia e acabariam como ninhos de insetos nos armazéns das editoras.”

A interpretação que Shockey faz de Roan é ótima. É com ela que encerro essa breve matéria:

“Do ponto de vista de Roan, é o consumo que impulsiona o mercado editorial e permite que o conhecimento seja passado para as futuras gerações de leitores. Roan chega ao ponto de afirmar que tsundoku é, de fato, “a própria cultura” (sunawachi bunka de aru), uma vez que a coleção e a preservação de livros permitem a transmissão de textos e ideias através do espaço e do tempo”.

Se você gostou desta matéria, considere ler também:

Fahrenheit 451: o universo distópico onde os bombeiros queimam livros

Bruno Leal

Doutor em História Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e professor do Departamento de História da Universidade de Brasília. É editor do portal Café História e colabora esporadicamente para o Bonecas Russas.

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